terça-feira, 6 de setembro de 2011

DVD de Irmãos Coragem

No último fim de semana terminei de assistir aos 8 DVDs que compõe o box de Irmãos Coragem, à venda nas lojas. A novela foi ao ar entre 1970 e 1971, de autoria de Janete Clair e direção geral de Daniel Filho. Teve 328 capítulos, uma das mais longas novelas da Globo, ficou quase um ano no ar. A impressão que tive é que a TV do comecinho dos anos 70 – ainda em preto e branco - era muito, muito ingênua. E considerando o sucesso que a essa novela fez, seu público só podia ser muito ingênuo também, para embarcar naquela fantasia.

A fantasia que me refiro não é a história em si – muito boa, empolgante, bem conduzida, coerente na maioria das vezes, com tramas paralelas interessantes que se unificavam com a história central. A fantasia que falo é a realização da novela, sua produção e direção. Irmãos Coragem mistura cenas dignas de imagens conceituais de cinema com algumas das sequencias mais toscas já vistas na televisão.

Realmente, aqueles eram outros tempos. O cinema fazia sucesso com filmes de bang-bang. Os italianos até criaram um estilo próprio neste segmento, o “western spaguetti”. A inspiração para Irmãos Coragem veio destes filmes, americanos e italianos. Proscritos, justiceiros a cavalo, muito tiroteio e o tempero brasileiro fizeram da novela o que se convencionou chamar de "faroeste caboclo".

A história é bem brasileira, mas os arquétipos do faroeste estão todos lá. O justiceiro honesto, puro de coração e ingênuo, na figura do mocinho João Coragem, que desacreditado com o sistema, resolve fazer valer sua própria justiça, com a melhor das boas intenções. O vilão Pedro Barros, no estilo dos “coronéis” do sertão brasileiro, poderoso, arrogante, se julgando o dono da região e, portanto, fazendo valer a sua própria lei. A mocinha sofredora, que no caso sofre porque é doente: Lara tem outras duas personalidades e enlouquece João Coragem de amor e dúvida.

E é no faroeste da novela que Irmãos Coragem peca, com cenas de luta e tiroteio mal feitas, mal dirigidas, toscas no sentido exato da palavra. E não são assim por precariedade de recursos técnicos ou da época. A TV brasileira já apresentara produções do requinte do cinema, na TV Excelsior nos anos 60 - vide novelas históricas como O Tempo e o Vento, As Minas de Prata e A Muralha. A impressão que passa é que as cenas foram gravadas assim de propósito, como se para imprimir um estilo próprio na novela, um faroeste caboclo, brasileiro e tosco.

Mas isso em nada diminui a obra. Pelo contrário, a deixa até divertida. E chega a ser um contraponto muito grande, pois a novela tem outras cenas muito bem dirigidas, com atores em grandes interpretações e tomadas cinematográficas. Percebe-se o uso excessivo de closes fechados, recurso para disfarçar cenários pequenos, prática que deveria ser comum na época. E a trilha sonora incidental é toda “chupada” de filmes de faroeste.

O que salta aos olhos na novela é a direção de atores e a interpretação de seu elenco. Até atores menos conhecidos, ou que nos acostumamos a ver em papeis menores, tem em Irmãos Coragem grandes momentos. Pode-se dizer que Carlos Eduardo Dolabella (Delegado Falcão), Ênio Santos (Dr. Maciel), Ana Ariel (Domingas), José Augusto Branco (Rodrigo César) e Dary Reis (Lázaro) tiveram seus melhores papeis na televisão em Irmãos Coragem.

Também um grande momento para Tarcísio Meira (João Coragem), Glória Menezes (Lara/Diana/Márcia), Claudio Cavalcanti (Jerônimo Coragem), Lúcia Alves (Potira), Regina Duarte (Ritinha), Emiliano Queiroz (Juca Cipó), Neuza Amaral (Branca) e Suzana Faini (Cema). Até Sônia Braga, novinha, em sua estreia em novelas, transmitiu segurança em cenas fortes de sua personagem Lídia.

Mas de todo o elenco, as melhores interpretações são de Gilberto Martinho e Zilka Salaberry. Martinho mostra uma interpretação visceral de seu vilão Pedro Barros. O personagem é um homem rude e odioso, quase selvagem, mas ao mesmo tempo humano, capaz de demonstrar afeto pelo filho bastardo, Juca Cipó, provando a dualidade do ser humano. A Sinhana de Zilka Salaberry é, por sua vez, a personificação da mãe coragem, capaz de tudo para proteger sua prole. A atriz se entrega totalmente à personagem. Com o olhar, revela toda a ternura de uma mulher rude, batalhadora e sofrida.

Cenas marcantes:

- João encontrando seu diamante - cena já repetida várias vezes na TV -, em uma tomada escura e claustrofóbica. Foi a primeira vez que a música tema da novela tocou na versão cantada, interpretada por Jair Rodrigues. Até então, o tema de abertura era uma versão instrumental da música.

- A primeira vez que Lara se transforma em Diana e isso fica visível para o público - havia o mistério: eram a mesma pessoa ou mulheres distintas? Na sequência, a câmera faz um close fechado no rosto de Glória Menezes, que cobre a tela inteira, e a atriz passa de uma a outra personagem apenas mudando a expressão facial. A trilha sonora ajuda a dar o clima.

- Jerônimo Coragem é um dos melhores personagens da novela, talvez o mais rico de todos. Claudio Cavalcanti tem sequências memoráveis. Como o acerto de contas com Lídia, em que ela acaba baleada. Uma cena de discussão longa, tensa, marcada pela ótima interpretação dos atores.

- Em represália a João Coragem, os homens de Pedro Barros batem em Sinhana e a levam até a cidade amarrada a uma corda, puxada por um cavalo. Aos olhos de hoje, a sequência chega a ser cruel.

- O “sonho” de Ritinha. Na verdade ela é dopada enquanto Juca, disfarçado numa fantasia, rouba a chave do cofre da prefeitura. O que se vê na tela é a retratação de uma viagem de ácido. Não era para menos, aqueles eram tempos do LSD. A câmera é deformada num vai-e-vem constante e enjoativo, em que Ritinha é envolvida por uma criatura disforme, numa dança alucinógena. Podia beirar o tosco, mas não. Com um simples recurso de deformação da imagem, a sequência consegue passar para o público a dúvida da personagem: era real ou não?

- O aborto de Potira. Assim como a viagem de ácido (o “sonho” de Ritinha) que fica subentendida para o público, também o aborto de Potira não é claro. Drogas e aborto eram temas por demais delicados para se tratar na televisão naquele início dos anos 70. Para todos os efeitos, a índia Indaiá prepara uma espécie de “ritual religioso” para que a criança que Potira espera “suma”. Mas é evidente que a índia velha deu à jovem algum chá abortivo.

- O casamento de Juca Cipó, numa referência a O Bem Amado, a peça de Dias Gomes, marido de Janete Clair. O Bem Amado ainda não havia sido adaptado para a televisão, e antes de Dirceu Borboleta ser obrigado a se casar com sua amada por ela estar grávida, Juca Cipó também se viu na mesma situação - com o agravante de que os personagens das duas novelas foram vividos pelo mesmo ator, Emiliano Queiroz!

- A sequência em que a câmera segue mostrando um rio e pára na imagem de Gloria Menezes sentada em uma pedra. Por trás de uma árvore, é possível ver Tarcísio Meira parado, quando, do nada, ele sai e grita por Lara. A impressão que ficou é que o “gravando” começou antes do diretor dar a ordem. Ou a imagem de Tarcísio Meira vazou e ele foi focalizado antes do tempo.

- A cena da perseguição ao trem, em que os homens do bando de João Coragem tentam resgatá-lo. Chega a ser risível de tão tosco que é o efeito final que aparece na tela. Essa não dá nem pra descrever. Só vendo!

Enfim, o DVD de Irmãos Coragem é, acima de tudo, o registro de um tempo em que a telenovela ainda não havia entrado no esquema industrial. Por mais mal acabadas que algumas passagens possam parecer aos olhos de hoje, é nítida a garra de um grupo de profissionais que se valia do talento acima de qualquer recurso tecnológico. É imperdível, diversão garantida para nostálgicos ou para os mais jovens que querem saber mais da história da nossa televisão.

Agora resta aguardar o DVD de Selva de Pedra!

Saiba mais sobre Irmãos Coragem no Teledramaturgia

9 comentários:

  1. Nilson, análise perfeita de Irmãos Coragem. Ri muito com as tais cenas toscas e também me emocionei com as sequências que você mencionou. Também acho as interpretações de Gilberto Martinho e Zilka Salaberry, inesquecíveis. Confesso que, quando comprei os DVDs, esperava ver uma história com narrativa datada, mas me surpreendi. Talvez a edição tenha dado uma maior agilidade às passagens, mas acredito que a diferença do original não tenha sido tão grande. Irmãos Coragem é uma novela de aventura, mas sem deixar de lado a eterna busca pelo amor, ingrediente indispensável em qualquer telenovela. Pra quem gosta do gênero, Irmãos Coragem é indispensável!

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  2. Eu comprei os DVDs, mas ainda não acabei de assistir. A música do Jair Rodrigues me emociona até hoje e o João Coragem é um dos melhores mocinhos de novela que já vi, junto do ambivalente e melancólico Cristiano Vilhena. A mãe Coragem Sinhana é um dos melhores personagens da teledramaturgia, na minha humilde opinião. Vale a pena ter.

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  3. Não seria coincidencia o juca cipó e o direceu borboleta?

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  4. Nossa, adorei a análise. Vc conseguiu "vender" o produto e despertar ainda mais minha curiosidade sobre a novela. E que bom que, diferenças tecnológicas á parte, sempre fomos excelentes no fator humano. Realmente, o elenco é uma atração à parte! Parabéns!

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  5. Adoro as multiplas personalidades de Lara. Grande interpretação de Gloria Menezes. A personagem era baseada no filme as 3 faces de Eva. A saudosa Miriam Pires ,como a tia da lara, tb arrasou na cena em que é descoberto seu segredo pelo Dr que cuida da Lara.

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  6. Foi uma novela que vi quase na íntegra aos meus 10 para 11 anos. Os primeiros capítulos via na casa de vizinhos, pois naqueles tempos nem todos tinham TV em casa.
    Como diz o Daniel Filho na abertura do primeiro DVD, era uma época em que o que contava era a criatividade dos realizadores...
    Infelizmente sabe-se que muitos capítulos da novela foram perdidos nos 2 incêndios da emissora e outros tantos foram apagados para gravar futebol nos video-tapes. Com isso a história ficou extremamente truncada, além do quê é impossível se resumir decentemente 328 capítulos em 8 DVD´s.
    Para mim valeu rever cenas que me faziam vibrar na adolescência, rever o elenco quando jovens e ver a precariedade de recursos da época...

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  7. Kd a cena de perseguição ao trem? Só ví a abertura...

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  8. Taí um clássico da TV que nunca me encheu os olhos. Achei "Irmãos Coragem" uma das novelas mais chatas de todos os tempos.
    Vi a reprise no Festival 25 anos e não gostei.
    Ainda prefiro mil vezes "Selva de Pedra", essa sim eu compraria em DVD.
    Mas da obra de Janete Clair, ainda acho "Pecado Capital" a melhor.

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  9. Embora a minha expectativa para "Selva de Pedra" seja maior, estou bem ansioso para assistir "Irmãos Coragem". Ótima análise!

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